O SENTIMENTO DE PERTENCIMENTO NA BUSCA RELIGIOSA


Introdução
O sentimento de pertencimento constitui uma necessidade humana fundamental, profundamente enraizada em nossa psique e intimamente ligada à saúde mental e ao bem-estar. As religiões, ao longo da história humana, têm desempenhado um papel crucial como estruturas que proporcionam não apenas sistemas de crenças, mas comunidades onde indivíduos encontram acolhimento, identidade e propósito compartilhado. Este texto explora, a partir de uma perspectiva psicológica e psicanalítica, como o sentimento de pertencimento influencia a busca religiosa e molda a experiência dos indivíduos dentro de suas comunidades de fé.
1. Conceitos psicológicos ligados ao pertencimento e identidade religiosa
A necessidade fundamental de pertencer
De acordo com a teoria da hierarquia das necessidades de Maslow, após as necessidades fisiológicas e de segurança, surge a necessidade de pertencimento e amor. Baumeister e Leary (1995) expandiram esse conceito ao propor a “hipótese do pertencimento”, argumentando que os seres humanos possuem uma necessidade inata de formar e manter relações interpessoais significativas. A religião, com sua estrutura comunitária, rituais compartilhados e narrativas coletivas, oferece um terreno fértil para satisfazer essa necessidade básica.
Uma pausa para explicar a hierarquia das necessidades de Maslow:
A teoria da hierarquia das necessidades, desenvolvida pelo psicólogo Abraham Maslow em 1943, é um dos modelos mais influentes para entender a motivação humana. Maslow propôs que as necessidades humanas seguem uma estrutura hierárquica representada por uma pirâmide.
Os Cinco níveis da pirâmide de Maslow
1. Necessidades fisiológicas
São as necessidades básicas para a sobrevivência humana.
Incluem: ar, água, alimento, abrigo, sono, sexo e outras funções corporais.
Representam as necessidades mais fundamentais e urgentes.
Influência no comportamento humano
Quando não satisfeitas, dominam completamente o comportamento humano.
Uma pessoa com fome extrema concentrará todos seus esforços em obter alimento.
Outras necessidades se tornam secundárias até que estas sejam razoavelmente satisfeitas.
2. Necessidades de segurança
Surgem após a satisfação razoável das necessidades fisiológicas.
Incluem: segurança física, emprego, recursos, saúde, propriedade.
Envolvem estabilidade e proteção contra ameaças.
Influência no comportamento humano
Quando ativadas, levam a comportamentos defensivos e busca por estabilidade.
Explicam por que as pessoas valorizam empregos estáveis, seguros de saúde e poupança.
Em situações de crise, como pandemias ou instabilidade econômica, tornam-se prioritárias.
3. Necessidades sociais
Relacionadas ao sentimento de pertencimento e conexão.
Incluem: amizades, relacionamentos amorosos, família, comunidade.
Refletem a natureza social dos seres humanos.
Influência no comportamento humano
Motivam comportamentos de formação de vínculos e relacionamentos.
Explicam a busca por aceitação em grupos sociais e profissionais.
A rejeição social pode causar impactos psicológicos profundos.
4. Necessidades de estima
Dividem-se em autoestima (respeito próprio) e reconhecimento externo.
Incluem: status, reconhecimento, atenção, reputação, importância.
Representam o desejo de ser valorizado por si mesmo e pelos outros.
Influência no comportamento humano
Impulsionam a busca por realizações, status e reconhecimento.
Motivam o desenvolvimento de habilidades e competências valorizadas.
Quando não satisfeitas, podem levar a sentimentos de inferioridade e baixa autoestima.
5. Necessidades de autorrealização
O nível mais elevado da pirâmide.
Incluem: desenvolvimento pessoal, criatividade, moralidade, resolução de problemas.
Refletem o desejo de alcançar o pleno potencial e propósito na vida.
Influência no comportamento humano
Incentivam a busca por significado, propósito e crescimento pessoal.
Motivam a criatividade, inovação e superação de limites.
Geram comportamentos altruístas e transcendentes.
A progressão das necessidades
Princípio da Prepotência: necessidades de nível inferior devem estar razoavelmente satisfeitas antes que necessidades superiores se tornem motivadoras.
Não é estritamente linear: uma pessoa pode estar parcialmente satisfeita em vários níveis simultaneamente.
Dinamismo: conforme as circunstâncias mudam, a importância relativa das necessidades também pode mudar.
Flexibilidade: Maslow revisou posteriormente sua teoria, reconhecendo que a hierarquia não é rígida para todos os indivíduos.
Aplicações Práticas
Em Contextos Pessoais
Necessidades Fisiológicas: hábitos saudáveis de alimentação e sono, exercícios regulares.
Necessidades de Segurança: planejamento financeiro, cuidados com saúde preventiva.
Necessidades Sociais: cultivo de relacionamentos significativos, participação em comunidades.
Necessidades de Estima: estabelecimento de metas pessoais, desenvolvimento de talentos.
Necessidades de Autorrealização: busca por propósito, prática espiritual, aprendizado contínuo.
Resumo
A teoria de Maslow nos oferece um modelo valioso para compreender as motivações humanas e como elas evoluem conforme diferentes necessidades são satisfeitas. Embora tenha sido alvo de críticas e revisões ao longo do tempo, continua sendo uma ferramenta útil para entender o comportamento humano e desenvolver estratégias eficazes tanto no âmbito pessoal quanto organizacional.
Formação da Identidade Religiosa
Segundo Erik Erikson, a formação da identidade é um processo central no desenvolvimento humano, especialmente durante a adolescência. Paloutzian e Park (2013), em seu "Handbook of the Psychology of Religion and Spirituality", destacam que a identidade religiosa frequentemente funciona como um “esquema cognitivo afetivo” que fornece estrutura, significado e continuidade à experiência pessoal. Quando um indivíduo se identifica com um grupo religioso, ele internaliza seus valores, crenças e práticas, incorporando-os à sua autoimagem.
Mecanismos Psicanalíticos
Na perspectiva psicanalítica, Freud via a religião como uma resposta ao desamparo humano e à necessidade de uma figura paterna protetora. Embora essa visão seja considerada reducionista por muitos teóricos contemporâneos, ela aponta para a função psicológica da religião como provedora de segurança psíquica. Jung, por sua vez, considerava a dimensão religiosa como parte integrante do processo de individuação, onde os símbolos religiosos funcionam como manifestações do inconsciente coletivo. O pertencimento religioso, neste sentido, conecta o indivíduo não apenas a uma comunidade, mas a arquétipos e narrativas que transcendem o tempo.
2. Impacto emocional e social do pertencimento religioso
Suporte social e bem-estar psicológico
Pesquisas consistentemente demonstram correlações positivas entre o envolvimento religioso e o bem-estar psicológico. Segundo Koenig (2012), em seu abrangente estudo "Handbook of Religion and Health", o pertencimento a uma comunidade religiosa está associado a menores índices de depressão, ansiedade e estresse, além de maior satisfação com a vida e propósito existencial. Esses benefícios são parcialmente atribuídos às redes de suporte social que as comunidades religiosas proporcionam.
Regulação emocional
Pargament (1997), em seu influente trabalho sobre enfrentamento religioso, demonstrou como as crenças e práticas religiosas funcionam como mecanismos de regulação emocional. O pertencimento religioso facilita este processo ao oferecer:
Estruturas interpretativas que conferem significado ao sofrimento.
Rituais coletivos que canalizam e transformam emoções difíceis.
Experiências de transcendência que contextualizam problemas individuais.
Comunidades que validam e compartilham experiências emocionais.
Identidade social e autoestima
A teoria da identidade social de Tajfel e Turner sugere que parte da nossa autoestima deriva da valorização dos grupos aos quais pertencemos. Ysseldyk et al. (2010) aplicaram este conceito à religião, propondo que a identidade religiosa é particularmente poderosa por combinar componentes cognitivos (crenças) e afetivos (emoções) com garantias de aceitação transcendental. O sentimento de ser “escolhido” ou “salvo” dentro de uma tradição religiosa pode proporcionar uma fonte robusta de autoestima e propósito.
3. Estudos de caso e exemplosempíricos
Conversão religiosa e transformação identitária
Um estudo longitudinal conduzido por Paloutzian, Richardson e Rambo (1999) acompanhou indivíduos durante processos de conversão religiosa, documentando profundas transformações em sua identidade e pertencimento social. Os relatos dos participantes frequentemente incluíam metáforas como “encontrar uma família” ou “voltar para casa”, ilustrando como a conversão religiosa satisfaz necessidades profundas de pertencimento.
Comunidades religiosas e crises
Snow e Phillips (1980) documentaram como, após desastres naturais, comunidades religiosas frequentemente mobilizam recursos materiais e emocionais para apoiar seus membros, criando redes de solidariedade que fortalecem os laços de pertencimento. O estudo mostrou que indivíduos ativamente envolvidos em congregações religiosas reportavam maior resiliência psicológica durante e após situações de crise, parcialmente devido ao sentimento de pertencer a uma comunidade que “não os abandonaria”.
Experiências de minorias religiosas
Miller e Worthington (2013) estudaram comunidades religiosas minoritárias nos Estados Unidos, descobrindo que o forte sentimento de pertencimento dentro dessas comunidades servia como proteção contra os efeitos negativos da discriminação. Por exemplo, muçulmanos que se sentiam integrados em suas comunidades religiosas demonstravam maior resiliência diante da islamofobia, com o pertencimento funcionando como um “escudo psicológico”.
4. Comparação do sentimento de pertencimento em diferentes contextos religiosos
Religiões de alta demanda vs. religiões liberais
Iannaccone (1994) distinguiu entre religiões de "alta demanda" (que exigem comprometimento substancial e sacrifícios de seus membros) e tradições mais liberais. Curiosamente, as religiões que impõem mais restrições e exigências frequentemente geram maior sentimento de pertencimento. Este paradoxo é explicado pela teoria da dissonância cognitiva e pelo “efeito do sacrifício”, onde o investimento pessoal intensifica o valor atribuído ao grupo.
Expressões comunitárias vs. Individuais de religiosidade
Tradições como o judaísmo, catolicismo e islamismo enfatizam a dimensão comunitária da experiência religiosa, com rituais coletivos e responsabilidades compartilhadas. Em contraste, algumas formas contemporâneas de espiritualidade enfatizam a jornada individual. Zinnbauer e Pargament (2005) observaram que, embora ambas as abordagens possam satisfazer necessidades espirituais, as expressões comunitárias tendem a proporcionar mais recursos para o sentimento de pertencimento.
Diferenças Interculturais
Cohen e Hill (2007) compararam o sentimento de pertencimento religioso em culturas individualistas e coletivistas, constatando que, embora presente em ambos os contextos, ele assume diferentes configurações. Em sociedades coletivistas, o pertencimento religioso tende a estar mais entrelaçado com a identidade familiar e étnica, enquanto em culturas individualistas, frequentemente resulta de escolhas pessoais e busca ativa por comunidades afins.
5. Implicações para a Saúde Mental e Coesão Social
Promoção da Saúde Mental
Koenig, King e Carson (2012) compilaram evidências substanciais de que o pertencimento religioso está associado a:
Menor incidência de depressão e ansiedade
Menor taxa de suicídio e uso de substâncias psicoativas
Recuperação mais rápida de traumas e perdas
Maior longevidade e melhor qualidade de vida
Os mecanismos propostos incluem tanto fatores psicossociais (suporte comunitário, senso de propósito) quanto comportamentais (promoção de estilos de vida saudáveis, regulação emocional através de práticas espirituais).
Riscos potenciais
Apesar dos benefícios, Exline e Rose (2005) identificaram “lutas religiosas” que podem surgir quando o pertencimento religioso se torna fonte de conflito. Indivíduos em processo de questionamento ou que desenvolvem crenças divergentes da comunidade podem experimentar profunda angústia e alienação. Esses casos ilustram o “lado sombrio” do pertencimento, onde a necessidade de conformidade pode comprometer a autenticidade pessoal.
Coesão social e polarização
Em nível societal, Putnam e Campbell (2010) documentaram como comunidades religiosas frequentemente contribuem para o "capital social" através de redes de confiança e reciprocidade. Paradoxalmente, enquanto o pertencimento religioso promove coesão intragrupo, pode também contribuir para divisões intergrupais. Este fenômeno destaca a importância do diálogo inter-religioso e da promoção de identidades inclusivas que reconheçam múltiplos pertencimentos.
Conclusão
O sentimento de pertencimento constitui um elemento central na busca religiosa, satisfazendo necessidades psicológicas fundamentais de conexão, identidade e significado. As evidências empíricas corroboram que comunidades religiosas podem proporcionar contextos onde indivíduos encontram não apenas suporte social, mas estruturas interpretativas que dão sentido à experiência humana. Ao mesmo tempo, a diversidade de expressões religiosas oferece múltiplos caminhos para o pertencimento, adaptando-se a diferentes personalidades, contextos culturais e necessidades psicológicas.
A compreensão psicológica do sentimento de pertencimento religioso tem implicações significativas tanto para profissionais de saúde mental quanto para líderes religiosos. Para os primeiros, reconhecer a importância das comunidades religiosas como fontes de suporte e significado pode enriquecer intervenções terapêuticas culturalmente sensíveis. Para os segundos, a consciência dos processos psicológicos subjacentes ao pertencimento pode orientar práticas comunitárias que promovam inclusão e bem-estar.
Em uma época de crescente individualismo e fragmentação social, o estudo do pertencimento religioso ilumina aspectos fundamentais da condição humana: nossa necessidade de conexão, nossa busca por significado e nossa capacidade de encontrar, nas comunidades de fé, lugares onde podemos ser simultaneamente acolhidos e transformados.
APROFUNDANDO RISCOS POTENCIAIS
Embora o pertencimento religioso ofereça inúmeros benefícios, Exline e Rose (2005) destacaram “lutas religiosas” que podem emergir quando esse pertencimento se transforma em uma fonte de conflito. Nesse contexto, indivíduos que estão em fase de questionamento ou desenvolvendo crenças que divergem das da comunidade religiosa podem enfrentar intensa angústia e um sentimento de alienação. Essas situações evidenciam o “lado sombrio” do pertencimento, no qual a pressão para conformidade pode comprometer a autenticidade pessoal e o bem-estar emocional. Explore as dinâmicas subjacentes a esses conflitos, considerando a interação entre a autonomia individual e as expectativas comunitárias. Analise também os impactos em longo prazo sobre a identidade e a saúde mental dos indivíduos afetados.
Riscos potenciais do pertencimento religioso:
O LADO SOMBRIO DA CONFORMIDADE
A Dialética entre pertencimento e autenticidade
O pertencimento religioso, embora frequentemente associado a benefícios psicológicos significativos, pode também se tornar fonte de profundo sofrimento psíquico quando se estabelece uma tensão entre a necessidade de conformidade grupal e a busca pela autenticidade individual. Esta tensão, denominada por Julie Exline e Ephraim Rose (2005) como "lutas religiosas", representa um aspecto fundamental da experiência humana em contextos religiosos que merece atenção detalhada tanto de profissionais da saúde mental quanto de líderes religiosos.
Tipologia das lutas religiosas
Exline e colaboradores (2014) desenvolveram uma taxonomia de lutas religiosas que ajuda a compreender esse fenômeno:
Lutas interpessoais: Conflitos internos sobre dúvidas, crenças e valores; Tensões com outros membros da comunidade religiosa.
Lutas com o divino: Questões relacionadas à conexão com Deus ou entidades superiores.
Lutas morais: Angústia sobre comportamentos que violam princípios religiosos
Lutas de dúvida: Questionamentos sobre doutrinas e ensinamentos fundamentais
Lutas de significado: Dificuldades em integrar experiências de vida com crenças religiosas
Estas categorias não são mutuamente exclusivas, mas frequentemente se sobrepõem, criando complexas constelações de angústia espiritual e identitária.
Dinâmicas subjacentes aos conflitos identitários religiosos
A PRESSÃO DA HOMOGENEIDADE DOUTRINÁRIA
Comunidades religiosas frequentemente estabelecem “fronteiras simbólicas” que definem quem pertence e quem não pertence ao grupo (Smith, 1998). Estas fronteiras são mantidas através de:
Afirmações doutrinárias que exigem assentimento.
Práticas rituais que requerem participação.
Códigos morais que regulam o comportamento.
Narrativas que definem uma identidade coletiva.
Quando um indivíduo começa a questionar estes elementos definidores, pode experimentar o que Festinger (1957) descreveu como “dissonância cognitiva” – um estado psicológico desconfortável resultante da inconsistência entre crenças sustentadas simultaneamente. Para reduzir essa dissonância, o indivíduo pode:
1. Modificar suas crenças pessoais para alinhar-se à comunidade.2. Tentar reformar a comunidade para acomodar suas crenças.
3. Compartimentalizar suas dúvidas, mantendo uma “dupla consciência”.
4. Afastar-se gradual ou abruptamente da comunidade.
Cada uma dessas estratégias carrega custos psicológicos significativos.
A ameaça do ostracismo
O medo da rejeição social é um poderoso motivador para a conformidade. Estudos neuropsicológicos demonstram que a dor do ostracismo social ativa as mesmas regiões cerebrais associadas à dor física (Eisenberger & Lieberman, 2004). Em comunidades religiosas onde a identidade social e espiritual estão profundamente entrelaçadas, a ameaça de exclusão não representa apenas a perda de relacionamentos, mas pode ser percebida como uma condenação espiritual ou existencial.
Hartger e colaboradores (2018) documentaram como, em comunidades religiosas altamente coesas, os indivíduos que expressam dúvidas ou divergências podem enfrentar:Marginalização gradual nas interações sociais.
Perda de papéis de responsabilidade ou liderança.
Pressão para “reconversão” ou reafirmação pública de ortodoxia.
Intervenções formais de disciplina ou correção.
Em casos extremos, shunning (evitação total) ou excomunhão.
O CUSTO DO SILÊNCIO
Para evitar essas consequências, muitos indivíduos optam pelo silenciamento de suas dúvidas e questionamentos, criando o que Winell (2007) denomina “dissonância existencial” – uma ruptura entre a experiência autêntica do self e a persona religiosa apresentada à comunidade. Esta cisão pode se manifestar como:Ansiedade crônica e dificuldade de concentração.
Despersonalização e desrealização.
Comportamentos compensatórios (hiperconformidade para “provar” pertencimento).
Sintomas psicossomáticos.
Depressão e ideação suicida em casos severos.
Pennebaker e Chung (2011) demonstraram consistentemente os efeitos negativos da inibição emocional e cognitiva sobre a saúde física e mental, sugerindo que o silenciamento de dúvidas religiosas pode constituir um fator de risco significativo para o bem-estar geral.
A Interação entre autonomia individual e expectativas comunitáriasEstágios de desenvolvimento espiritual e cognitivo
Fowler (1981), em sua teoria do desenvolvimento da fé, propôs que indivíduos atravessam estágios previsíveis de maturação espiritual, cada um caracterizado por diferentes formas de relacionamento com a autoridade religiosa e a tradição. Conflitos frequentemente emergem quando:
- Um indivíduo progride para um estágio mais complexo de fé (ex: da fé “mítico-literal” para a fé “individualista reflexiva”).
– A comunidade religiosa privilegia ou sacraliza um estágio específico de desenvolvimento– Não existem modelos ou linguagem para articular transições desenvolvimentais
Streib (2001) expandiu este modelo, sugerindo que os estilos religiosos não são necessariamente sequenciais, mas podem coexistir e interagir de maneiras complexas ao longo da vida. Esta perspectiva ajuda a compreender por que algumas pessoas experimentam transições relativamente harmoniosas enquanto outras enfrentam rupturas traumáticas.
A tensão entre individualismo e coletivismo
As sociedades contemporâneas, particularmente ocidentais, valorizam a autonomia e a autenticidade individual como virtudes fundamentais. No entanto, muitas tradições religiosas surgiram em contextos culturais mais coletivistas, onde a conformidade ao grupo era considerada essencial para a sobrevivência física e espiritual.
Taylor (2007), em seu influente trabalho "A Secular Age", argumenta que vivemos em uma época caracterizada pela "virada subjetiva" – uma valorização sem precedentes da experiência individual e da autenticidade pessoal. Esta mudança cultural cria tensões particulares em comunidades religiosas que mantêm estruturas autoritativas tradicionais.
Wuthnow (1998) observou uma progressiva mudança de uma religiosidade "baseada em morada" (dwelling-oriented) para uma "baseada em busca" (seeking-oriented), onde indivíduos participam de comunidades religiosas não por tradição ou obrigação, mas como parte de uma jornada espiritual pessoal. Esta transformação altera fundamentalmente as dinâmicas de pertencimento e conformidade.
Impactos em longo prazo sobre a identidade e a saúde mentalTrauma religioso e suas manifestações
Ward (2011) e Winell (2007) foram pioneiros na documentação da “Síndrome do Trauma Religioso” – um conjunto de sintomas similares ao TEPT que pode resultar de experiências religiosas negativas, particularmente aquelas envolvendo rejeição, condenação ou manipulação espiritual. Os sintomas incluem:
Flashbacks e pensamentos intrusivos relacionados a experiências religiosas.
Evitação de estímulos associados à religião (símbolos, música, linguagem).
Hipervigilância em contextos que lembram a comunidade religiosa.
Dificuldade em confiar em figuras de autoridade.
Culpa e vergonha persistentes.
Distúrbios na sexualidade e intimidade.
Confusão de identidade e propósito existencial.
Stone (2013) observou que o trauma religioso é frequentemente complicado pela \"perda ambígua\" – o luto por uma comunidade e cosmovisão que forneciam estrutura e significado, mesmo quando estas eram fonte de sofrimento.Reconstrução identitária pós-religiosa.
Indivíduos que se afastam de comunidades religiosas onde anteriormente encontravam forte sentido de pertencimento frequentemente atravessam um processo complexo de reconstrução identitária. Streib e Keller (2004) identificaram fases típicas neste processo:
1. Crise: Intensificação de dúvidas e conflitos internos.2. Reflexão: Avaliação crítica de crenças e práticas anteriores.
3. Separação: Distanciamento físico e/ou psicológico da comunidade.
4. Reconstrução: Desenvolvimento de novas estruturas de significado.
5. Integração: Reconciliação de elementos da identidade religiosa anterior com novas compreensões.
Este processo raramente é linear e pode estender-se por anos ou décadas. Coates (2013) observou que muitos indivíduos desenvolvem o que ele denomina “identidades fronteiriças” – posicionamentos existenciais que não são completamente dentro nem completamente fora dos sistemas religiosos de origem.
Resiliência e crescimento pós-traumático
Apesar dos desafios, estudos recentes (Abu-Raiya et al., 2016) sugerem que as lutas religiosas, quando adequadamente processadas, podem resultar em crescimento psicológico significativo, incluindo:Maior complexidade cognitiva e tolerância à ambiguidade.
Empatia expandida e compreensão de perspectivas diversas.
Desenvolvimento de um sentido de identidade mais integrado e autônomo.
Aprofundamento da espiritualidade, mesmo quando desconectada de estruturas religiosas formais.
Maior autenticidade nas relações interpessoais.
Pargament et al. (2006) observaram que, para muitos indivíduos, o afastamento de comunidades religiosas restritivas não significa necessariamente o abandono da espiritualidade, mas frequentemente sua transformação em formas mais individualizadas e integradas à experiência pessoal.
Considerações para profissionais e comunidadesAbordagens terapêuticas culturalmente sensíveis
Profissionais de saúde mental que trabalham com indivíduos experimentando lutas religiosas beneficiam-se de:Competência cultural em tradições religiosas específicas.
Neutralidade em relação a crenças religiosas (nem patologização nem idealização).
Reconhecimento das complexas perdas associadas ao afastamento religioso.
Familiaridade com questões existenciais frequentemente associadas a transições religiosas.
Sensibilidade aos variados significados de símbolos e linguagem religiosa.
Vieten et al. (2016) desenvolveram diretrizes específicas para integrar competências espirituais e religiosas em práticas psicológicas, enfatizando a importância de respeitar tanto a autonomia quanto as conexões comunitárias dos clientes.
Reformulações de comunidades religiosas
Algumas comunidades religiosas estão desenvolvendo modelos mais inclusivos que acomodam diversidade de crenças e questionamentos. Estes modelos frequentemente incluem:Espaços designados para exploração de dúvidas e questões.
Reconhecimento da legitimidade de múltiplos estágios de desenvolvimento espiritual.
Afirmação da importância da consciência individual junto com a tradição.
Abertura ao diálogo com outras tradições e perspectivas seculares.
Menor ênfase em fronteiras doutrinárias rígidas e maior foco em práticas compartilhadas.
Ammerman (2013) documentou como comunidades “ancoradas mas não confinadas” podem proporcionar pertencimento significativo enquanto respeitam a jornada espiritual individual de seus membros.
Conclusão
O “lado sombrio” do pertencimento religioso emerge precisamente da colisão entre necessidades humanas fundamentais: por um lado, nosso profundo anseio por conexão, pertencimento e significado compartilhado; por outro, nossa igualmente fundamental necessidade de autenticidade, crescimento e autodeterminação. Quando comunidades religiosas priorizam conformidade em detrimento de desenvolvimento, ou quando indivíduos enfrentam isoladamente transformações espirituais sem suporte adequado, o resultado frequentemente manifesta-se como sofrimento psicológico significativo.
Compreender as complexas dinâmicas subjacentes às lutas religiosas permite tanto a profissionais quanto a comunidades de fé desenvolver abordagens mais compassivas que reconheçam a legitimidade de diversas jornadas espirituais. Talvez o maior desafio das comunidades religiosas contemporâneas seja cultivar espaços que proporcionem tanto o profundo sentido de pertencimento quanto o respeito pela autenticidade e pelo crescimento individual – reconhecendo que a verdadeira comunidade religiosa não exige uniformidade, mas floresce na diversidade.Por Washington Pêpe - Psicanalista
Leia o artigo da Psicóloga Miriam Debieux Rosa no Jornal da USP clicando AQUI.
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