O CANTO DO GALO NOS EVANGELHOS


Todos conhecemos a história bíblica: Pedro, o discípulo próximo de Jesus, o negaria três vezes "antes que o galo cantasse", cumprindo a profecia e marcando um dos momentos mais dramáticos dos Evangelhos. Mas e se eu lhe dissesse que talvez nunca tenha existido um galo real nessa passagem? Intrigante, não? Novas evidências históricas e análises culturais estão revelando uma interpretação surpreendente desse episódio, transformando completamente nossa compreensão tradicional. Ao explorarmos os sistemas de vigilância romana, a divisão do tempo na época de Jesus e o verdadeiro significado do termo "gallicinium", descobrimos camadas de contexto que permaneceram ocultas por séculos. Prepare-se para uma jornada fascinante que desafiará suas concepções estabelecidas e ampliará seus horizontes sobre as Escrituras. Ao final desta leitura, você nunca mais verá da mesma forma este momento crucial da narrativa cristã.
O equívoco consiste em interpretar o cantar do galo de forma literal e em não analisar o contexto em que os fatos se deram.
Primeiro precisamos compreender como se dividia o dia e a noite naquela época:
O DIA SE DIVIDIA EM DOZE HORAS
6h0m1s: Nascer do sol (início da primeira hora do dia)
7h: Fim da primeira hora do dia, início da segunda hora
8h: Fim da segunda hora do dia, início da terceira hora
9h: Fim da terceira hora do dia, início da quarta hora
10h: Fim da quarta hora do dia, início da quinta hora
11h: Fim da quinta hora do dia, início da sexta hora
12h: Fim da sexta hora do dia, início da sétima hora
13h: Fim da sétima hora do dia, início da oitava hora
14h: Fim da oitava hora do dia, início da nona hora
15h: Fim da nona hora do dia, início da décima hora
16h: Fim da décima hora do dia, início da décima primeira hora
17h: Fim da décima primeira hora do dia, início da décima segunda hora
A NOITE SE DIVIDIA EM QUATRO VIGÍLIAS
O sistema romano de divisão da noite em quatro vigílias foi introduzido na Judeia durante o período romano e tornou-se mais comum no Novo Testamento. Este sistema era mais militarizado e tinha como objetivo garantir a vigilância e a segurança durante a noite.[1].
Compreender os horários dessas vigílias é fundamental para interpretar corretamente os eventos narrados nos Evangelhos, como a prisão de Jesus e a negação de Pedro.
Horários das Vigílias da Noite:
Primeira Vigília (Vespera ou Prima Vigilia):
Início: Pôr do sol (aproximadamente 18h).
Fim: Aproximadamente 21h (9 da noite).
Características: Este período marcava o início da noite e era um tempo para descanso e preparação para a noite.
Segunda Vigília (Media Nox ou Secunda Vigilia):
Início: Aproximadamente 21h (9 da noite).
Fim: Meia-noite.
Características: Este era um período de maior escuridão e silêncio, frequentemente associado a momentos de reflexão e oração.
Terceira Vigília (Gallicinium ou Tertia Vigilia):
Início: Meia-noite.
Fim: Aproximadamente 3h da manhã.
Características: Este período era marcado pela troca de guardas e pelo “canto do galo”, um sinal de que a noite estava chegando ao fim.
Obs.: Gallicinium" é um termo latino que, em português, significa “canto do galo” ou “hora do canto do galo”. Historicamente, também era usado para referir-se à terceira vigília da noite, correspondente ao período entre a meia-noite e o amanhecer. No contexto da Bíblia, o canto do galo (gallicinium) é citado como um sinal de que o novo dia está se aproximando.
Quarta Vigília (Matutina ou Quarta Vigilia):
Início: Aproximadamente 3h da manhã.
Fim: Amanhecer.
Características: Este era o último período da noite, marcado pela aproximação da luz e o fim da escuridão. Era um tempo para preparação para o novo dia e para agradecimento pela proteção durante a noite.
É importante lembrar que esses horários são aproximados e variam de acordo com a estação do ano e a localização geográfica.
A transição entre as vigílias noturnas era assinalada pela meticulosa troca da guarda romana, um procedimento que envolvia não apenas a substituição física dos soldados, mas também a execução de rituais e sinais específicos para garantir a continuidade da vigilância e a manutenção da ordem. O termo “canto do galo”, frequentemente associado à terceira vigília, pode ser interpretado como uma referência ao momento em que esses procedimentos eram realizados.
A troca de turno da guarda romana era um evento formal e disciplinado, seguindo um protocolo rigoroso para garantir a segurança e a continuidade da vigilância. O procedimento típico envolvia:
Formação: Os soldados da guarda cessante (que estavam terminando seu turno) e os da guarda entrante (que estavam iniciando o turno) formavam em frente ao posto de guarda.
Inspeção: Um oficial romano (como um centurião ou decurião) inspecionava ambos os grupos de soldados para garantir que estavam devidamente equipados e em condições de cumprir suas funções.
Passagem de Responsabilidade: O comandante da guarda cessante passava formalmente a responsabilidade para o comandante da guarda entrante. Isso poderia envolver a entrega de um símbolo de autoridade, como uma tabuleta ou um bastão.
Contrassenha: A contrassenha (palavra-chave) era transmitida da guarda cessante para a entrante, garantindo que apenas os soldados autorizados pudessem entrar e sair do posto.
Substituição: Os soldados da guarda entrante substituíam os da guarda cessante em seus postos, seguindo uma ordem específica.
Além da referência simbólica ao “canto do galo”, que pode ser interpretada como o momento da troca da guarda, os romanos utilizavam outros sinais auditivos e visuais para indicar a mudança de turno, havia o Toque de Trombeta (Tuba), O toque de trombeta era um sinal comum para marcar o início e o fim das vigílias noturnas. O tubicen (tocador de trombeta) era responsável por emitir os sinais sonoros, alertando os soldados sobre a mudança de turno. Foi este o “canto do galo” a que Jesus se referia e que Pedro escutou após a terceira negativa de que conhecia Jesus.
O próprio Jesus conhecia a existência deste toque e o horário em que o mesmo acontecia, pois a troca de turno era anunciada com o gallicinium, conhecido como: alektorophonia, “o cantar do galo”. Esse costume judaico foi citado, inclusive, por Jesus, ao denominar a terceira vigília como “o cantar do galo” Marcos 13:35 - “Vigiai, pois, porque não sabeis quando virá o senhor da casa; se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela manhã”, observe que ele coloca “o cantar do galo” entre meia-noite e a manhã.
Compreender os horários das vigílias da noite no contexto do século I é fundamental para interpretar corretamente os eventos narrados nos Evangelhos. Esses períodos de vigilância, oração e guarda fornecem um contexto temporal e cultural importante para a compreensão da vida e do ministério de Jesus e seus discípulos.
A reinterpretação do “canto do galo” como o toque da trombeta romana não diminui a importância da narrativa evangélica, mas, ao contrário, enriquece nossa compreensão do contexto histórico e cultural em que os eventos se desenrolaram. A história da negação de Pedro, assim, ressoa com uma nova profundidade, lembrando-nos da complexidade da fé, da fragilidade humana e da importância de interpretar os sinais dos tempos com sabedoria e discernimento.
O fato de não existir um galo literal para cantar ali naquele momento não altera em nada o teor da mensagem do Cristo
Referência Bibliográfica:
[1] Keener, Craig S. The IVP Bible Background Commentary: New Testament. Downers Grove: InterVarsity Press, 1993.
- Vegecio. De Re Militari (Sobre Assuntos Militares). [2] Goldsworthy, Adrian. The Complete Roman Army. Thames & Hudson, 2003.
“Disse-lhe Jesus: Em verdade te digo que, nesta mesma noite, antes que o galo cante, três vezes me negarás”. Mateus 26:34.
“Então começou ele a praguejar e a jurar, dizendo: Não conheço esse homem. E imediatamente o galo cantou. E lembrou-se Pedro das palavras de Jesus, que lhe dissera: Antes que o galo cante, três vezes me negarás. E, saindo dali, chorou amargamente”. Mateus 26:74,75.


